Os adolescentes e jovens em Moçambique enfrentam uma série de barreiras no acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva (SSR). Estas barreiras, frequentemente moldadas por estigmas sociais e desinformação, tendem a ser mais agravadas entre grupos vulneráveis e marginalizados, tais como mulheres jovens solteiras, mulheres lésbicas e bissexuais, e deslocados internos.
No âmbito do projecto mais amplo, Despertai para Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, o Guttmacher Institute, em colaboração com o Centro de Pesquisa em População e Saúde (CEPSA), conduziu um estudo qualitativo com o objectivo de compreender melhor estes desafios a partir das experiências vividas pelos próprios jovens. Em 2023, foi conduzido um estudo qualitativo para explorar como as normas sociais influenciam o acesso à informação e aos serviços de SSR entre adolescentes e jovens de ambos sexos, no Norte de Moçambique. Participaram jovens com idades entre os 15 e os 24 anos, provenientes dos distritos da Cidade de Nampula, Nacala Porto e Mecubúri, incluindo deslocados internos e não deslocados internos, tanto em contexto escolar como fora dele, através de grupos focais de discussão. Nestes grupos focais, os participantes foram convidados a reflectir sobre os comportamentos dos seus colegas, uma abordagem eficaz para captar normas sociais entre grupos demográficos semelhantes. Paralelamente, foram realizadas entrevistas individuais com mulheres jovens lésbicas e bissexuais. Esta ficha informativa resume as principais conclusões do relatório do estudo e apresenta recomendações dirigidas a profissionais de saúde e defensores dos direitos sexuais e reprodutivos.
Contexto
Moçambique apresenta uma baixa taxa de uso de contracepção moderna entre adolescentes dos 15 aos 19 anos, associada a uma elevada taxa de necessidade não satisfeita de métodos de planeamento familiar, uma elevada taxa de fecundidade na adolescência, e uma das taxas de mortalidade materna mais elevadas entre mulheres de todas idades. Embora a legislação permita a interrupção voluntária da gravidez por solicitação até às 12 semanas de gestação e, em certas condições, após esse período, muitas adolescentes grávidas continuam expostas ao risco de recorrer a abortos inseguros devido ao estigma, à desinformação e a outras barreiras do acesso a serviços seguros. O país regista também uma das taxas mais elevadas de uniões prematuras a nível mundial: 14% das raparigas entram numa união antes dos 15 anos, e 46% antes dos 18 anos. A união precoce, frequentemente associada à violência por parte do parceiro íntimo e ao conhecimento limitado sobre SSR, compromete os direitos e a autonomia das adolescentes no acesso a serviços de SSR adequados.
A saúde e os direitos sexuais e reprodutivos (SDSR) dos adolescentes continuam a ser ameaçados por práticas discriminatórias e várias formas de violência. Apesar da descriminalização da homossexualidade no Código Penal em 2014, Moçambique ainda carece de mecanismos legais específicos e eficazes que garantam a protecção e responsabilização em casos de discriminação contra pessoas LGBT. Desde 2017, o Norte de Moçambique — com particular incidência na província de Cabo Delgado — tem sido palco de um conflito armado interno entre forças governamentais e grupos insurgentes, resultando em mais de 800.000 deslocados internos.
Três distritos da província de Nampula — vizinha de Cabo Delgado — foram selecionados pela equipa de pesquisa, considerando a vulnerabilidade e o perfil demográfico de elevado risco.
Uso de contracepção
Os participantes relataram diversos mitos e percepções negativas associados ao uso de preservativos e de outros métodos contraceptivos por parte dos jovens. Entre as crenças mais recorrentes destacam-se:
- A ideia de que a contracepção encoraja comportamentos promíscuos ou leva à infertilidade
Vão falar que essa está planear para ser prostituta, no quer ter filhos agora, está se prevenir para ficar assim mesmo só fazendo negócio. (jovem homem, grupo focal com não deslocados internos de 18–21 anos, Mecubúri)
- O receio de que os preservativos fiquem presos no corpo da mulher, provocando infecções ou complicações
Pode te falar você não pode usar preservativo de qualquer maneira, se você usar de qualquer maneira vai se contaminar com HIV. As vezes falam de que esse preservativo vem com a doença aí mesmo, então são dicas de… são dicas dos amigos. (homem jovem, grupo focal com deslocados internos de 18–21 anos, Cidade de Nampula)
- O foco principal das raparigas na prevenção da gravidez, o que leva à negligência do uso do preservativo quando já utilizam outros métodos contraceptivos, desvalorizando a protecção contra infecções de transmissão sexual (ITS).
Recomendações
- Campanhas nas redes sociais, em acções de sensibilização comunitária e em programas de educação entre pares, são fundamentais para combater a desinformação e promover os benefícios do uso de preservativos e outros métodos contraceptivos. Estas iniciativas ajudam a prevenir gravidezes indesejadas e a reduzir a propagação de ITS.
- Formar os próprios jovens como educadores de pares em uso de preservativos e contracepção é uma abordagem eficaz para garantir a partilha de informação correta entre pessoas da mesma faixa etária.
- Ademais, os profissionais de saúde devem beneficiar de formação contínua e abrangente sobre como abordar a contracepção de forma empática e adequada à realidade dos jovens.
Infecções de Transmissão Sexual
O estigma e a vergonha persistem como grandes barreiras que impedem os jovens de procurarem e receberem tratamento para ITS, nomeadamente o HIV e a SIDA. Para além do desconforto associado a exames médicos e do receio de serem vistos nas unidades sanitárias, os participantes identificaram várias barreiras no acesso aos cuidados, entre as quais se destacam:
- Negação do diagnóstico de ITS ou desconfiança em relação à veracidade das informações prestadas pelos profissionais de saúde — em particular no caso do HIV, que permanece fortemente estigmatizado
- Recusa do tratamento, incluindo a medicação ou terapias anti-retrovirais
Eu queria dar exemplo de um amigo. Também tinha gonorreia e daí ele não falou para ninguém, nem foi no hospital. Mas só depois de duas semanas com aquela gonorreia é que as pessoas mais próximas é que descobrem aquilo… Chegava parte de nem conseguir andar e foi aí que as pessoas descobriram que tem gonorreia e daí foram lhe tratar… Mas isso pode ser vergonha mesmo como meu amigo estava dizer [este embaraço impediu o jovem de procurar tratamento mais cedo.] (homem jovem, grupo focal com deslocados internos de 18–21 anos, Cidade de Nampula)
- Exigência de apresentação do parceiro sexual para testagem e tratamento por parte dos serviços de saúde
A vergonha e o estigma dificultam igualmente o diálogo com os parceiros sexuais: muitos jovens evitam conversar sobre o seu estado serológico, sobretudo em relação ao HIV. Segundo os participantes dos grupos focais, é raro os jovens perguntarem os seus parceiros sobre o seu estado serológico por receio de serem rejeitados; quando o fazem, muitas vezes não recebem respostas sinceras sobre o estado de saúde do seu parceiro e dificilmente há revelações espontâneas em caso de diagnóstico positivo.
Recomendações
- Para encorajar os jovens a procurar o acesso ao diagnóstico e tratamento de ITS, é fundamental reforçar a confidencialidade dos serviços de testagem e tratamento de doenças nas unidades sanitárias.
- Iniciativas de sensibilização que combatam o estigma associado às ITS — incluindo o HIV e a SIDA — devem ser promovidas através de meios de comunicação como a rádio, televisão e redes sociais; iniciativas comunitárias de educação entre pares; e a integração de mensagens sobre ITS com desestigmatização do assunto em programas de saúde já existentes.
- Serviços móveis de saúde, e plataformas digitais de telemedicina — como linhas de apoio gratuitas ou aplicativos móveis que disponibilizem informações específicas sobre prevenção de ITS, locais de testagem, lembretes de consultas e acesso a aconselhamento confidencial — podem contribuir significativamente para aumentar a predisposição dos jovens à procura de cuidados relacionados com as ITS.
Barreiras no Acesso a Cuidados de SSR
A maioria das jovens lésbicas e bissexuais entrevistadas considera que os serviços de saúde não estão preparados para responder de forma adequada às necessidades em termos de SDSR de pessoas com orientações sexuais diversas. Relataram experiências marcadas por atitudes discriminatórias e ambientes hostis no acesso aos cuidados, o que perpetua a exclusão e resulta numa oferta insuficiente e inapropriada de serviços para a população LGBT. Entre os casos mais frequentes de discriminação nas unidades sanitárias, destacam-se:
- Pressão entre colegas profissionais para que se trate com negligência às pacientes lésbicas
- Recusa em prestar atendimento
- Acto de ignorar as pacientes ou adiar intencionalmente a prestação de cuidados
- Comentários depreciativos e piadas ofensivas
Tem pessoas que saem, mesmo encontrar uma enfermeira que vai te tratar bem né… influenciam essa enfermeira [não tratam bem todos os doentes], ‘Haa… você não pode cuidar dela, essa é lésbica, essa não vale nada’. (lésbica, 22 anos, Cidade de Nampula)
Além disso, participantes dos grupos focais relataram que mulheres adolescentes e jovens enfrentam barreiras significativas no acesso aos cuidados pré-natais, sobretudo quando se apresentam desacompanhadas de um parceiro. Nestas situações, são frequentemente alvo de maus-tratos por parte dos profissionais de saúde, incluindo:
- Cobrança indevida por serviços de parto que deveriam ser gratuitos
- Longos períodos de espera para receber atendimento
- Atitudes de desdém e julgamento visível por parte dos profissionais de saúde, mesmo em casos de doença grave ou situações de urgência médica
Existem outras que não vão para os hospitais porque lá costumam querer um casal, mulher e homem, para abrir ficha pré-natal… então quando você fica grávida já não vês o homem que te engravidou, ou já não te assume… Aí não haverá maneira para ir no hospital sozinha, porque não irão te atender… te expulsam e te falam: ‘Traz o homem que te engravidou’… Você vai levar teu irmão para hospital [se fazer passar por marido]… Tem uns [que] sentam em casa até criança crescer por causa de não ter cartão. (mulher jovem, grupo focal de não deslocadas internas de 20–24 anos, fora da escola, Nacala Porto)
Recomendações
- É fundamental que os defensores da SSR promovam a implementação de políticas de saúde que assegurem o princípio da não discriminação, reconhecendo, nomeadamente, o direito das mulheres de acederem de forma autónoma aos cuidados de saúde, sem exigência da presença de um parceiro.
- Também é essencial envidar esforços de advocacia e sensibilização relativas às necessidades específicas de SSR da população LGBT, como forma de combater a discriminação baseada na orientação sexual.
- A criação de espaços ou unidades amigas dos jovens nos centros de saúde já existentes — onde mulheres adolescentes e jovens possam receber cuidados em ambientes acolhedores, seguros e respeitosos — pode melhorar substancialmente a qualidade dos cuidados prestados a estes grupos vulneráveis.
Aborto
As mulheres adolescentes e jovens recorrem à interrupção voluntária da gravidez por diversas razões, incluindo abandono por parte do parceiro, vergonha, desejo de prosseguir com os estudos ou incerteza quanto à paternidade. O medo de revelar a gravidez aos pais é também um factor de peso na tomada de decisão. Nos casos em que o parceiro se faz presente, a decisão sobre o aborto é, frequentemente, influenciada de forma marcante pela opinião do homem.
Não é possível mulher abortar sem consentimento do seu parceiro. Primeiro conversa com o namorado que lhe engravidou, e muitas vezes quem decide é o homem se podes abortar ou não. (mulher adolescente, grupo focal com não deslocadas internas de 15–19 anos, fora da escola, Nacala Porto)
Alguns participantes indicaram que existem unidades sanitárias que oferecem serviços de aborto gratuitos. No entanto, relataram que apenas um número reduzido de mulheres adolescentes e jovens recorrem a esses serviços formais. Poucos dos entrevistados tinham conhecimento sobre o aborto medicamentoso. Relatos apontam que muitas mulheres jovens optam por métodos tradicionais e perigosos, utilizando combinações de:
- Coca-Cola
- Detergente em pó
- Cabeças de palitos de fósforo
- Raízes e folhas de planta, incluindo aloé vera e moringa
Recomendações
- A criação de serviços confidenciais de aconselhamento sobre gravidez dirigidos à juventude pode proporcionar um espaço seguro e sem julgamentos, permitindo que jovens acedam a informações claras sobre as opções disponíveis em caso de gravidez não desejada, bem como estratégias para comunicar a situação aos pais.
- É igualmente importante disponibilizar aconselhamento sobre os riscos associados aos métodos inseguros de aborto e reforçar a divulgação de informações sobre opções seguras e gratuitas de interrupção da gravidez nas unidades sanitárias, de modo a aumentar a saúde, autonomia e protecção das jovens.
